Bob Gato, Bob Chato | AMPM | Edição 22
Ilha do Mel. Barca. Reggae. Fumacê. Bob Marley. Futebol. Cinema. Pipoca. Jamaica. Cinebiografia. Mauley. One Love. Redemption Song encheu o saco. Playlist. Sem camisinha. Crítica. Instagramável
Esta é a 22ª edição da newsletter “As Melhores Playlists do Mundo”. Uma seleção de canções, livre e pretensiosa, sobre tema determinado. Mas é também sobre tudo, como música.
Eu saí de casa muito animado e disposto a ter uma péssima experiência na sala do cinema: assistir a “One Love”, a cinebiografia definitiva do Bob Marley. Pelo que havia visto no trailer, prometia ser um arregaço, no pior dos sentidos: um cara que toda vez que abre a boca tem algo muito profundo a dizer, uma mensagem, um toque na cuca. Em resumo, um chato.
Antes, contudo, é fundamental estabelecer algumas reservas. Eu sou um marleyista juramentado. Lembro do impacto fulminante do som de Trenchtown na banca dos guris do Cristo Rei, numa época em que todo mundo era metaleiro, problemas comuns dos meninos adolescentes, como a fimose, a Crista de Galo e a falta de higiene. Quem nos apresentou? Um bróder ali dos conjuntos pra cima da Av. Nossa Senhora da Luz, que só poderia ter o apelido de… Ricardo Bob Marley.
Anos depois, numa das inúmeras turnês baianas, confisquei o “Rebel Music” da discoteca do meu tio Otto. E, progressivamente, fui mergulhando no ritmo caribenho, sempre com o pai do Ziggy, Imani, Sharon, Cedella, Stephen, Robbie, Rohan, Karen, Stephanie, Julian, Ky-Mani, Damian e Makeda como principal referência. E se alguém diz que não gosta de reggae, eu já fico meio cabreiro.
Comprei uma pipoca, no impulso, pois considero um comestível bastante superestimado, pra me escorar ao longo da experiência na telona. E já foi um aborrecimento superar os intermináveis trailers, uns sete, pelo menos. Acabaram as fitas só com pessoas, sem nenhuma explosão? Uma das prévias, Duna 2, acho, se eu entendi conta a história da luta da humanidade contra um ânus gigantesco. Esquisito, mas tudo bem.
Consumidas as quase duas horas de poltrona, vamos, então, às conclusões gerais sobre a obra do diretor Reinaldo Marcus Green, também autor de “King Richards”, com o Will Smith. E, você sabe, a boa crítica, de qualquer espécie, é um bolo formado por sólidos argumentos, que sustentam a massa, e considerações sem base nenhuma, por puro deboche, a cobertura.
Primeiro, quando eu morrer, quero que façam a minha cinebiografia igual a do Bob ou do Ray Charles, com um ator principal muito mais bonito que o biografado. O desconhecido Kingsley Ben-Adir encarna o Rei do Reggae, o Maior Artista do Terceiro Mundo na História, o genial compositor e excelente futebolista, mas, também, com a mesma energia, nos oferece uma nova figura: o Bob Gato. Imagino o poder de destruição do referido solto na Ilha do Mel ou na Guarda do Embaú.
Depois, só os corações de pedra não se arrepiam com “War”, “Jammin’” e “Exodus”, entre outros hinos, trepidando no vigoroso sistema de som de uma sala moderna de cinema, em cenas de shows e estúdio ricamente reproduzidas. A ponto de eu ter que me fiscalizar, agora, para que a emoção não se sobreponha a razão exigida para uma análise clínica, cínica e crítica do filme. Deixemos, portanto, o persuasivo embalo do reggae em segundo plano.
Finalmente, a cinebiografia do Bob é exatamente o fruto do seu tempo. Por mais que tangencie questões delicadas, como a baderna política na Jamaica, as contradições flagrantes do personagem e as relações conflituosas dentro da banda e de casa, é tudo tão superficial como só poderia ser atualmente. Uma versão instagramável da trajetória de Marley, recortada em tantos stories quanto necessários para encher o tempo de um longa-metragem.
“Ah, mas não há como escapar das necessidades de mercado, da pressão das pesquisas de opinião, da preocupação de oferecer um personagem palatável para o mundo”. Bem, isso é um problema da Tuff Gong e da Rita Marley. Eu queria ver aquele Bob sinistro, boleiro, genial, gangsta, carismático, muito solto, messiânico, olhos coloridos, um proto-líder mundial que morreu aos 36 anos por que se recusou a meter o bisturi no dedão do pé.