AMPM | Edição 20: Ele chegou antes do Bob
Inglaterra. Jamaica. Estados Unidos. Gangsta. Ska. Roberto Marley. Reggae. Bloquinho. Paulo McCartney. Periferia. James Bond. Sabotage. Londres. Pout-Pourri. Irreprochável. Patoá. Rudies
Esta é a 20ª edição da newsletter “As Melhores Playlists do Mundo”. Uma seleção de canções, livre e pretensiosa, sobre tema determinado. Mas é também sobre tudo, como música.
Mais uma contribuição luxuosa de outro amigo, João Paulo Pimentel, também jornalista. Outra oportunidade de ler alguém que sabe escrever e entende do que está falando. algo totalmente fora de moda. Aproveitem!
Não tenho nem roupa pra vestir neste espaço. Mas se o dono dele disse que eu poderia entrar, aqui vou eu, de rider no pé e pochete na cintura, com muita honra e torcendo para manter o nível elevadíssimo das níus-léteres. O titular do campo deixa claro que AMPM segue a máxima do velho Tim: "Vale tudo". Então também chego quebrando as regras, mesmo as inexistentes. A playlist aqui é mero pretexto para um lamento. É também um empurrãozinho para que, você querido leitor, escute um artista: Desmond Dekker.
Exceto por ter sido citado na letra de “Ob-la-di, Ob-la-da”, de um certo Paul McCartney (parece que esteve no Brasil há pouco), Desmond Dekker é criminosamente subestimado. Muito antes de Bob Marley, foi ele quem levou a música jamaicana para o resto do mundo – leia-se para a Inglaterra e os States. Ainda no fim dos anos 1960, Dekker e os Aces, duo de backing vocals que o acompanhava, alcançaram o topo da parada britânica com sucessos como “007 (Shanty Town)” e “It Mek”. “Israelites” foi ainda mais longe: chegou ao Top 20 dos EUA, mesmo que o público norte-americano não entendesse patavina das gírias, do sotaque ou das alusões ao cotidiano brutal da periferia de Kingston.
A fase de hits durou pouco. Em 1971, a morte do produtor Leslie Kong, com quem Dekker trabalhava desde o início da carreira, deixou o cantor e compositor sem rumo. Dekker continuou gravando e fazendo shows, principalmente na Terra da Rainha (Terra do Rei Charles jamais vai funcionar como boa expressão do léxico), para onde tinha se mudado. Morreu em Londres, em 2006, aos 64 anos. Era celebrado por uma base pequena de fãs e seu pioneirismo era frequentemente relembrado a cada nova onda inglesa de ska, rocksteady e reggae (e foram várias). Mas Dekker merecia mais.
Diferentemente de Marley e Peter Tosh, Dekker fez poucas concessões ao rock e ao pop internacionais em sua música, o que talvez explique seu relativo ostracismo. Mantinha um pé firme nas fontes inspiradoras do rhythm & blues e da soul music americanas e outro na inconfundível batida jamaicana. Só do período heroico de 1966 a 1971, o catálogo de Dekker tem umas 20 músicas fenomenais.
Ah, mas qual é a do “Ob-la-di, Ob-la-da”? Para o bem e para o mal, a música foi a única tentativa de ska que os Beatles cometeram. Saiu no Álbum Branco, de 1968, mesmo ano em que “007” ficou entre as músicas mais tocadas na Grã-Bretanha. Na letra, Paul narra o cotidiano de um casal e dispara já no primeiro verso: “DESMOND has a barrow in the market place.” Se a maior banda do planeta encontrou espaço para homenagear o cara, mais do mundo deveria fazer o mesmo. Então, aí abaixo listo 15 faixas essenciais. Fiz em ordem cronológica pois coleciono manias leves, que não afetam minhas relações sociais (quer dizer, eu acho):
#20 | Ele chegou antes do Bob
#1 | Honour Your Mother and Your Father (1963)
Mais R&B do que ska, a primeira gravação do jovem Dekker já demonstrava a ginga do cantor e seu potencial como compositor. Além disso, embalava uma mensagem que nenhum pai ou mãe reprovaria.
#2 | King of Ska (1964)
Primeiro sucesso no país natal, tem uma pegada carnavalesca apropriada para esta época de bloquinhos de esquenta. O carnaval de Dekker é mais New Orleans, mas carnaval mesmo assim. Rendeu o apelido de “rei do ska” (que ele deve ter dividido com outros 37 artistas). Tem uma regravação em que Dekker colaborou com os Specials, nos anos 1990, que merece ser conferida.
#3 | 007 (Shanty Town) (1966)
Aqui o negócio fica sério. Primeiro hit internacional, com apoio maciço dos mods, aquela turma esquisita de ingleses que gostavam de lambreta, ternos roxos e anfetaminas. O rocksteady (primo do reggae) suave engana: Dekker decidiu que era hora de falar de gangues, desafio a autoridades, estilo de vida dos rude boys jamaicanos (“Eles roubam, eles atiram, eles choram”; ora que sensíveis) e James Bond. Quem aí se lembra que “Dr. No”, o primeiro filme do espião, se passa na Jamaica?
#4 | Rude Boy Train (1967)
Dekker gostou da transformação gangsta e só foi. Metais que imitam uma locomotiva para popularizar os rudies, que tanto fizeram os punks suspirarem dez anos mais tarde.
#5 | It Pays (1967)
O coral da abertura parece introduzir uma canção natalina, mas aí entra o baixo estremecedor contrastando com todas as vozes dos Aces em falseto e o resultado é sublime.
#6 | Sabotage (1967)
Décadas antes da homônima dos Beastie Boys, Dekker compôs esta pérola romântica para falar de uma namorada que sabota seu amor e machuca seu coração. Com direito a muito chu-bidú-bidú-dúp.
#7 | Beautiful and Dangerous (1967)
Aqui Dekker já estava nadando de braçada, evoluindo rumo ao ápice do ano seguinte. Como de costume, o cara cata harmonias vocais do R&B de raiz, mergulha no caldo caribenho, mete várias quebradas de ritmo, e produz uma baladinha incrível.
#8 | Israelites (1968)
O auge, o clássico, a obra-prima. Fez história ao se tornar a primeira canção de reggae a atingir o topo das paradas no Reino Unido e entrar até mesmo na lista da Billboard, nos EUA, onde até então ninguém ligava para ritmos jamaicanos. Reggão racha-assoalho IRREPROCHÁVEL.
#9 | It Mek (1968)
Mais um hit estrondoso na Inglaterra. Também é possível que tenha sido um plano para confundir os ex-colonizadores num patoá incompreensível fora da ilha onde fora concebida.
#10 | Music Like Dirt (Intensified) (1968)
Ganhou o Festival da Canção da Jamaica no ano em que foi lançada. Muito reggaeiro brazuca dos anos 1990 faria um pacto com Mefisto para ganhar esse suingue.
#11 | Fu Man Chu (1968)
Sugiro ouvir e compartilhar versos no LinkedIn. "It make no sense at all to say where you used to work" ou "Ninguém de verdade quer saber com o que você trabalha".
#12 | Pickney Girl (1969)
Não é o Joe Strummer que faz a contagem inicial? Guitarrinha marota e uma levada boa do início ao fim. Dizem que é uma das favoritas entre o público jamaicano.
#13 | You Can Get It If You Really Want (1970)
Cover do gigante Jimmy Cliff, outro pupilo do produtor Leslie Kong. Dekker conseguiu colocar a música na vice-liderança da parada britânica com arranjos praticamente idênticos à versão original.
#14 | (Where Did It Go) The Song We Used to Sing (1970)
Expatriado em Londres, Dekker deu uma guinada nessa fase, com orquestrações e outras firulas que, incrivelmente, em nada diluem a originalidade do seu estilo. Esta faixa, em particular, é capaz de fazer o mais empedernido curitibano sorrir e acenar para os vizinhos.
#15 | Live and Learn (The More You Live) (1971)
Das últimas gravadas ainda sob a batuta de Kong, Dekker saúda o outono da carreira numa espécie pot-pourri de sucessos passados.