AMPM | Edição 18: Quando eu era fã de armas. E rosas
Rock in Rio, bermudinha lycra, quinta série, pôster, legado, crônica do cotidiano, memórias, Sunset Strip, cartola, peixes, Sepultura, balada, VHS, Sharp, bigode penugem, piso de caco de azulejo
Esta é a 18ª edição da newsletter “As Melhores Playlists do Mundo”. Prioritariamente, uma seleção de canções, livre e pretensiosa, sobre tema determinado. Mas é também sobre tudo, como música. Desta vez, uma publicação diferente.
Um dos propósitos desta newsletter é deixar um legado, com o perdão da expressão, da escrita afetiva e afetada de André Pugliesi, para a única pessoa, ao menos em tese, disposta a se interessar por semelhante obra: minha filha. Caso ainda exista Substack daqui a uns anos e se, numa sanha revisionista, eu não deletar tudo (vocês também sentem certa vergonha ao ler o que escrevem logo em seguida?).
Fico à vontade, assim, para publicar outras abordagens, invariavelmente coalhadas de nostalgia, como a que virá. Pauso a oferta de playlists para retroceder a uma época, tenho convicção absoluta, quando muita coisa era melhor. Imagine só sair de casa e não poder ser encontrado? Incrível. Não tinha Facebook, Twitter e Instagram (aliás, você ainda está lá? Não? É super cafona, né).
Lembro com todas as cores, sons e odores. Subo pela rampa da garagem, entro pelo portão lateral, cruzo o corredor de piso de cacos de azulejos vermelhos da linda mansão setentista da Carlos de Carvalho, caio numa conversa e vem a pergunta inapelável: “Você gosta de ‘peixes’?”. Entendi assim. Ou melhor, não entendi, e derivei com alguma solução evasiva.
Fui encontrar a resposta adequada apenas meses depois, quando, finalmente, conheci a música, já hit inescapável nas rádios brasileiras, bem como no planeta todo: a baladaça “Patience”, do Guns n’ Roses, um bebê diabo do rock parido nos clubs da Sunset Strip lavados numa mix de laquê, vodka e cocaína. Fosse inquirido novamente e poderia devolver: “Sim, eu curto “peixes”, e sou capaz, inclusive, de reproduzir a parte assobiada”. Mas era tarde demais.
Foi um episódio singular de uma paixão avassaladora na minha entrada na adolescência, justamente a fase das paixões avassaladoras e, na mesma proporção, das decepções também. Devoção que, em alguma circunstância do comecinho dos anos 90, fez parecer um adereço de vestuário viável a bermudinha de lycra estampada com as listras e estrelas da bandeira dos Estados Unidos usada pelo vocalista e diva Axl Rose.
Outros equívocos, e acertos, foram cometidos ao longo de uma trajetória só possível graças ao movimento oportuno do meu amigo Oscar, que gravou os dois shows dos americanos no Rock in Rio de 1991, realizado no mais nobre palco brasileiro, o Maracanã. Sem aquelas três horas de fita magnética, tudo poderia ter sido diferente e, quem sabe, eu estaria agora num grupo esquisito do Discord falando sobre RPG e Iron Maiden com quarentões fantasiados de elfos.
Mas ao assistir o Guns n’ Roses encontrei um motivo para viver e superar a vergonha de um bigode já bastante proeminente. Comprei revistas, colei pôsteres, costurei (minha mãe) um patch da banda na minha jaqueta jeans com gola de lã de carneiro, rodei quilômetros da fita VHS no meu videocassete Sharp apelidado de “Fucão”, por exibir o mesmo vigor do carro clássico da Volkswagen. O hard rock do conjunto angeleno era a minha vida.
Quem também teve papel primordial foi o Daniel, que me emprestou o vinil de “Appetite for Destruction”, e por infindáveis horas eu me prostrei diante da capa, absorto pela imagem que fora proibida nos EUA. Com o disco em mãos, pude mimetizar, na sala do apartamento da Reinaldino de Quadros, botão de volume no talo, as apresentações da banda, contando com meu irmão trajado numa versão miniatura do Axl Rose. E quando o Athletico colhia uma vitória aqui e ali, fato raro, o mundo parecia muito próximo do ideal.
Mas a vida é pródiga em surpresas, e a adolescência prepara algumas cruéis. Lembro do fascínio pela música “So Fine”, do “Use Your Illusion II”, o azul. Mais por ser cantada pelo baixista Duff McKagan, a intrigante figura punkrocker do Gn’R. Mesmo sem fazer a mais primitiva ideia do significado da letra, os quatro minutos e nove segundos da faixa 10 permeavam as fantasias bestas de um guri.
Tudo ao mesmo tempo em que eu entabulava um namorico relâmpago e infantil, bastante indeciso se fazia sentido trocar o futebol do recreio pra ficar de mãos dadas no pátio da escola. Foi quando as coisas ganharam novo sentido, inesperado por mim. Subitamente, me vi trocado, com boas razões, acredito, e o destino reservou mais do que a mágoa pela rejeição: a música do novo casal era “So Fine”. Foi mais ou menos por aí que eu virei fã do Sepultura. Conto mais em outra oportunidade.