AMPM | Edição 17: Ouvir música não significa mais nada
All Music, Spotify, Wikipedia, Streaming, Rolling Stones, Beatles, Pink Floyd, Manguebeat, algoritmo, CDs, Alta Fidelidade, Sex Pistols, Ramones, Rap, Rock de Brasília
Esta é a 17ª edição da newsletter “As Melhores Playlists do Mundo”. Prioritariamente, uma seleção de canções, livre e pretensiosa, sobre tema determinado. Mas é também sobre tudo, como música. Desta vez, uma publicação diferente.
Talvez você tenha reparado, talvez não, que furei na semana passada pela primeira vez, após 16 edições, em escala mais ou menos semanal. Não tem problema, certo? Volto, enfim, em grande estilo, com colaboração do meu amigo e jornalista Guilherme Voitch, que havia prometido uma lista com músicas tristes, mas aparece com uma bem enjambrada reflexão sobre os tempos modernos da música.
Chego já pedindo as devidas escusas, inebriado pela sequência dos belíssimos textos sobre música escritos para gente grande, de forma direta e sem concessões ao público-alvo, algoritmo ou a qualquer manual pé no saco de SEO. Resolvi, então, entrar na brincadeira.
Prometi ao dono do espaço uma lista de músicas, seguindo assim a proposta original. Entrego uma elucubração um tanto longa sobre a relação entre música e internet. Perdão pelo vacilo.
Feito o devido preâmbulo, arrisco dizer que enviar conteúdo sobre música somente e direto para a caixinha de e-mail dos afortunados assinantes faz todo sentido. Já falar sobre música para o mundo aí fora em 2023 parece, definitivamente, algo fora de propósito, simplesmente porque ninguém mais liga para bandas e discos. As músicas até continuam aí e provavelmente nunca se reproduziu tanta música como hoje em dia.
Ocorre que a canção deixou ser ela mesma um objeto de contemplação. Hoje, o formato de consumo é a playlist, onde uma música é apenas uma parte no todo e o artista é dispensável e na maioria das vezes anônimo. A playlist é a trilha sonora do trânsito, do churrasco com os amigos, da academia e da vida cotidiana, em resumo. É o que a jornalista Morgan Meaker chama de “borrão de músicas indistinguíveis que imitavam meu gosto musical” neste artigo da Wired.
Se o algoritmo do Spotify tornou-se nosso guia e pastor, nos levando de lista em lista, a música como unidade vai assumindo seu papel de trilha sonora do Tik Tok. O historiador e crítico musical Ted Gioia acredita, por exemplo, que a “revolução do streaming” nos fará retornar à Idade Média, quando as composições podiam alcançar enorme popularidade, mesmo quando seus autores permaneciam em grande parte anônimos. Curiosamente, o produtor de conteúdo e, o mais importante, fã de música, Jacob Givens fez piada com essa mesma relação enquanto exte texto era escrito. A tese de Gioia é provocante, no mínimo, mas não desprovida de sentido.
Hoje, olhando em perspectiva, fica claro que o consumo de música canônico, que pressupunha um vínculo sentimental do ouvinte com bandas, discos, gêneros e movimentos musicais, entrou em colapso ali pela metade dos anos 90. Nesse sentido, a substituição dos CDs pelos arquivos de Internet foi a chuva de meteoros da indústria musical, nossa Era Glacial, a megafauna inocente vendo a chegada do Homo Sapiens. Nada seria como antes e não estamos aqui dizendo se a mudança teve mais aspectos positivos ou negativos. Foi bom ou ruim? Não sabemos ao certo, como costuma dizer o dono deste espaço.
O fato é que nada seria como antes e a tradicional cultura da música, com seus rituais de consumo, sucumbiria para sempre. A paixão à primeira vista por uma capa, o delicioso ato de abrir um vinil ou CD, a ansiedade pela primeira faixa, o desfrutar atento de um disco inteiro na sequência, o longo e complexo processo de descobrir artistas e estabelecer conexões orgânicas entre bandas, álbuns e músicas. Tudo isso pertence a outra era geológica. Outro tempo. Essa cultura mais ou menos popular e comum da música pop no sentido amplo está morta.
Paradoxalmente, o que é talvez a característica definidora desta rede mundial de computadores, a internet ampliou ao infinito as possibilidades de acesso, pesquisa e conexão entre bandas. Como membro tardio da Geração X, lembro bem das dificuldades de se conhecer música. A história é mais ou menos manjada. Estávamos presos à programação das rádios, reinava a selvageria econômica pré-Plano Real e as gravadoras escolhiam o que lançar ou não no Brasil. Material importado estava obviamente fora de questão, a não ser que você fosse filho ou amigo dos filhos de diplomatas (alô, Rock de Brasília!).
Ao mesmo tempo, escrevia-se muito sobre música. Os grandes jornais tinham repórteres especializados nessa cobertura, havia revistas de músicas nas bancas e na cena mais alternativa circulavam fanzines para todos os gostos.
Tal fenômeno produzia situações interessantes. Um veterano jornalista de música conta que se apaixonou por Siouxsie and the Banshees no começo dos anos 80 lendo sobre eles em uma revista. Os cabelos, as roupas, o nome da banda, a temática das músicas, tudo parecia misterioso e empolgante. Nesse particular, a audição posterior comprovou que havia razão para o amor arrebatador.
Em outros casos, bandas eram jogadas em uma discussão como cartas de Supertrunfo com as referências em branco. Pessoalmente, lembro de um amigo do colégio que foi subitamente interpelado por um vizinho mais velho com dureza e arrogância. O pecado do meu amigo era estar trajando uma camiseta dos Ramones. “O Sex Pistols é que é o punk pesado”, disse o vizinho, com ar de desprezo. A afirmação tão incisiva nos fez batalhar por semanas por uma fita cassete de “Never Mind The Bollocks” para só então tirarmos nossas conclusões de adolescentes sobre punk e pesado.
Os relatos de revistas e jornais também faziam surgir toda uma tradição oral relacionada às bandas. O relato do próprio Sex Pistols tocando em um rio no meio de Londres, despejando ofensas à rainha, dava uma aura mítica à banda. Havia os Beatles tocando em um telhado, um show dos Rolling Stones cheio de seguranças motoqueiros, o fundador do Pink Floyd que ficou louco, um cara do jazz que gravou um disco cheirando cocaína por uma semana sem dormir.
Hoje, logicamente, há registro de praticamente tudo que aconteceu. Shows antes vistos como lendários estão disponíveis no Youtube. Estão aí o All Music, e a Wikipedia para nos situarmos com datas, estilos e formações. Os próprios serviços de streaming fazem um bê-á-bá histórico de cada grupo, associando-os às bandas similares.
A obscena quantidade de informação, porém, está disponível para um público cada vez mais diminuto. O fãzoca de música envolto em coleções de discos e discussões sobre listas, tão bem retratado por Nick Hornby em “Alta Fidelidade”, passou de um personagem mais ou menos excêntrico a um completo desajustado social.
Colocar a música como algo de valor em uma vida se equipara a idolatria por Star Wars, a prática da atividade conhecida como Pakua ou a fixação em “futebol alternativo”.
A “obsessão” por discos e bandas ganha contornos trágicos porque música é hoje uma cultura morta. O fenômeno, por óbvio, é claramente perceptível com o rock, ritmo que sempre se caracterizou por ser a fagulha que inflamava a juventude com o binômio rebeldia + guitarras.
A antiga Coca-Cola da música sempre foi o gênero que melhor e mais facilmente conseguia traduzir os anseios da juventude e que ao mesmo tempo mais facilmente conseguia estabelecer pontes com outros estilos: jazz, blues, rap, country, samba etc.
Ocorre que o rock sucumbiu a dois ataque contíguos: o envelhecimento do público e um processo de fragmentação extremo. De modo geral, o fã de róque ficou mais velho, o que significa ficar mais careta, precavido e algumas vezes saudosista. Envelhecer é bastante salutar, vide Nelson Rodrigues, mas pouco sexy e atraente para a imagem do rock and roll.
Ao mesmo tempo, o rock se subdividiu em um sem-número de vertentes mundo afora. Há milhares de microcenas acontecendo agora mesmo e elas pouco dependem de proximidade física para se concretizarem. Como fenômeno social e cultural, o cenário sempre foi um fator a ser pensado e analisado. Havia contexto geográfico, histórico e cultural na invasão inglesa dos anos 70, na cena de metal da Califórnia dos anos 80, na Seattle da virada dos 80 para os anos 90.
Era também claramente perceptível as diferenças locais do rock brasileiro dos anos 80 e 90, ainda que nosso rock fosse tão jovem, como ainda se fala também da nossa democracia. Hoje esse fator tornou-se irrelevante. As interações humanas necessárias para a construção de uma cena foram enterradas pelo isolamento, pelas distrações da internet e pela violência urbana. Sem a construção de cenas, a música perde sua referência para a compreensão de lugares e períodos. Lembrem do romântico mas inocente manifesto do Manguebat que pregava e celebrava “uma antena parabólica enfiada na lama”. A antena para o mundo precisa de alguma base, seja ela qual for.
O uso do róque como expressão de descontentamento social também perdeu força. “Cool kids do not like rock”, diz a banda italiana divertida, mas claramente produto de uma mente publicitária. A rebeldia mais ou menos simples contra a autoridade, representada pelos gritos contra a família, o estado e a sociedade, deu lugar a uma notável e intrincada complexidade de queixas sociais globalizadas.
Há muitas e diferentes pautas e causas no mundo de hoje e algumas vezes elas se unem e em outras vezes elas se chocam. É um caminho tortuoso. De modo geral, o Hip-Hop e suas derivações parecem conseguir dialogar melhor com a juventude sobre esses conceitos. De forma mais direta e simples, ao menos. Assim, o rock perdeu o discurso da rebeldia e tem perdido o discurso da celebração. No caso específico do Brasil, festa se faz com sertanejo, rap e até, quem diria, nova MPB.
Envelhecido, sem discurso e sem referência social para ser cultura de massa, o rock sobrevive hoje em micronichos estanques. Pior. Na condição de carro-chefe da música para os jovens das últimas décadas, arrastou a música pop para o mesmo caminho. Há tribos de aficionados em metal nórdico, assim como há em K-Pop, Taylor Swift ou nova MPB. Mas gostar e se importar com qualquer uma dessas coisas de verdade é só muito estranho e esquisito. Ainda mais em um mundo de oferta sonora incessante, que não exige do ouvinte dedicação, vínculo ou comprometimento.